domingo, 18 de agosto de 2013

RESSOAR ALTERNATIVAMENTE OS CLAMORES DA RUA:
dialogando com Ivandro da Costa Sales  e outros analistas das recentes mobilizações populares

Alder Júlio Ferreira Calado

Ainda ressoam nítidos – até porque continuam, de alguma forma - os clamores populares (re)editados por milhões de cidadãos e cidadãs brasileiros, pelas ruas e praças de nosso País. Aqui nos referimos, por certo, a grandes ondas de manifestações, à semelhança das “Diretas-Já”, do “Fora Collor”, por exemplo. Quanto às mais recentes, dezenas de textos têm circulado, desde então, tentando interpretar, compreender e encontrar elementos de respostas aos gritos, demandas e aspirações expressos, numa imensa diversidade de abordagens e olhares, abrangendo desde elementos da esfera sócio-econômica (transporte coletivo, mobilidade urbana, segurança pública, saúde pública, moradia, educação, etc., etc.), ao terreno político (ética na política, combate à impunidade seletiva, reforma política, com seu cipoal de itens); e ao campo cultural (democratização da mídia, diversidade humana ante a laicidade do Estado, etc., etc.), ao campo sócio-ambiental...

A exemplo de tantas pessoas, também li, nesses dias, uma considerável gama de textos, entrevistas e análises (de autoria individual e coletiva). Aqui tomo em consideração vários deles, e em especial o texto escrito por Ivandro da Costa Sales, intitulado “Junho de 2013 no Brasil. A farsa perdeu a graça. E agora?” (ver em anexo). Nele, Ivandro da Costa Sales trata de lançar seu olhar crítico acerca das recentes mobilizações no Brasil, e de, em diálogo especialmente com Gramsci, de desmontar a farsa da democracia parlamentar, apontando a importância de se tomar em consideração as potencialidades do “Estado ampliado”, chamando a atenção para a centralidade do papel da sociedade civil como horizonte de superação das contradições presentes na relação Sociedade-Estado. São, com efeito, múltiplas  nossas afinidades, dentre as quais destaco, de passagem, apenas duas: a importância de dialogarmos com bons clássicos (Marx, Gramsci...) e o reconhecimento da incapacidade da democracia parlamentar, de dar conta do enfrentamento exitoso desses desafios trazidos pelas vozes da rua, do ponto de vista dos interesses e aspirações fundamentais dos movimentos sociais e das organizações de base de nossa sociedade. Por outro lado, nas linhas que seguem, partindo do pressuposto de nossas múltiplas afinidades analíticas, cuido de esboçar o que sinto como diferenças (complementares?) em nossas análises, quanto a certos aspectos, sobretudo no que concerne ao que venho assumindo como incapacidade invencível, por parte do Estado (não apenas o Estado capitalista...), de responder, de forma duradoura e a contento, às aspirações mais fundas, na perspectiva da incessante construção de uma sociedade economicamente justa, politicamente protagonista (nas decisões), culturalmente diversa, ecologicamente em harmonia com a dignidade do Planeta e da comunidade dos viventes, sempre na perspectiva da universalização desses direitos.

Igualmente com base no texto de Ivandro da Costa Sales e de outros analistas, além do que eu próprio escrevi a esse respeito, em 21 de junho de 2013 (cf.
dou como suposto o vasto elenco de clamores, reivindicaçoes e aspirações trazidos pelas recentes mobilizações, no Brasil, com o propósito de aqui me ater mais diretamente ao “depois das mobilizações”, aos encaminhamentos que, conforme avalio, deveriam ser priorizados pelas forças sociais que atuam com projeto de superação do atual sistema de produção, de consumo, de gestão e de convivência com a Mãe Natureza. E tento fazê-lo por meio de breves tópicos, apenas enunciando minhas (nossas?) inquietações e apostas, nesse plano.

1. Captar bem os clamores, as reivindicações e os sonhos dos protagonistas das mobilizações constitui um primeiro e fundamental passo.Ainda mais importante é buscar pistas concretas e instrumentos capazes de ir materializando-os, a curto, médio e longo prazos, conforme seu grau de complexidade e alcance.

De Emir Sader a Frei Betto; de Ivo Lesbaupin a Roberto Malvezzi; de João Pedro Stédile a Ivandro da Costa Sales e tantos outros e outras, inclusive os textos coletivos sobre a mesma problemática, revela-se impactante o elenco de análises que se têm debruçado sobre as mais recentes manifestações populares no Brasil. Identificá-las – e aos seus respectivos sujeitos -, mapeá-las, classifica-las, analisa-las – isto constitui um primeiro passo indispensável, sem o qual se tornaria vão pretender-se responder minimamente a essas vozes. Por outro lado, bem sabemos tratar-se de um passo por certo necessário, mas insuficiente para dar curso a elementos mais consistentes de resposta a tais clamores. O emaranhado de demandas sociais, econômicas, políticas, culturais, sócio-ambientais há de merecer a devida atenção, à medida que se ousar, por parte dos mesmos sujeitos manifestantes e seus aliados, manter-se mobilizados em busca de respostas aos seus pleitos e aspirações, não sem tomar em conta que toda uma retrospectiva de caminhos antes seguidamente tentados, mas com resultados pífios ou nulos, o que constitui um claro sinal de que é preciso ousar outros caminhos. Nessa busca, podem despontar perguntas tais como:
- Há quanto tempo tais ou semelhantes demandas vêm sendo pleiteadas? Por quem? Junto a quem ou a que instâncias? De que modo? Que eventuais elementos de respostas foram obtidos?

-É sabido que da/na conflagração dos conflitos sociais, há sempre quem perde e quem sai ganhando. Sendo assim, que forças têm, quase sempre, levado a melhor, nesses conflitos? Que fatias das riquezas socialmente produzidas têm sido destinadas às forças sociais da base da sociedade, no campo e na cidade? Que forças têm sido secularmente privilegiadas, abocanhando também hoje as maiores e melhores fatias do bolo das riquezas públicas? Como desses conflitos no campo e na cidade têm-se saído os grandes conglomerados transnacionais atuando nas mais distintas áreas da vida social: no mundo das finanças, da indústria e comércio de armamentos, do tráfico de drogas e de pessoas, dos paraísos fiscais, da biodiversidade, da infraestrutura, da exploração dos bens naturais? Qual tem sido a evolução do agronegócio, das grandes empreiteiras, das grandes empresas de mineração? E os privilegiados da indústria do ensino, da saúde, da previdência social, do transporte, da segurança, etc., etc.?

- Todas essas situações concretas a beneficiarem indefinidamente setores privilegiados à custa de crescente desigualdade social no campo e na cidade, da degradação da vida do Planeta (dos Humanos e de toda a comunidade dos viventes), da violência social, do sucateamento e degradação da qualidade dos serviços públicos essenciais poderiam sustentar-se sem o necessário concurso ou cumplicidade do Estado e seus respectivos aparelhos? Vejamos isto melhor, no item a seguir.

2. Tal como as significativas alterações sofridas pelo atual modo de produção, de consumo, de gestão e de convivência com a natureza, importa reavaliar, no contexto, as alterações do Estado.

- Em qual tipo de sociedade o Estado já se revelou, como regra e de forma duradoura e satisfatória, um verdadeiro aliado a serviço das classes subalternizadas tratadas como sujeitos de sua história?

- Conhece-se a posição dos clássicos do Marxismo, a começar do próprio Marx, acerca do papel do Estado, em qualquer sociedade de classes (espécie de comitê da classe dominante), inclusive em períodos de superação do Capitalismo (como ferramenta de transição a serviço da Classe Trabalhadora, até à extinção das divisões de classes, e portanto da necessidade do Estado, que deve ser extinto). Reconhece-se que, em determinado período, esta foi considerada como “a” alternativa possível, como um mal necessário, ainda que quase nunca tenha sido uma instância de todo confiável e fiel aos interesses das bases da Classe Trabalhadora, não raro, tornada refém dos caprichos megalômanos de dirigentes vitalícios partidários e da máquina estatal, cujos métodos se assemelham, por vezes, ao dos dirigentes do antigo regime.

Não bastassem esses traços e esses sinais tão contundentes, sucede ainda que, com as profundas alterações sofridas, nas últimas décadas pelo Capitalismo (Mercado e Estado!), será que dá mesmo para seguir contando com o Estado como aliado efetivo da Classe-dos-que-vivem-do Trabalho? Onde isto acontece, hoje, a partir das experiências concretas disponíveis?

- Até que ponto aquilo que os próprios clássicos entendiam tratar-se de uma instância necessária à transição de uma sociedade de classes para uma sociedade comunista (definida pelo princípio: “De cada um, conforme suas possibilidades, para cada um, segundo suas necessidades”) chegou a fazer mesmo essa transição, mesmo em períodos históricos relativamente favoráveis?

- Qual tem sido a experiência mais comum dos Estados socialistas, com relação a prosperarem do Socialismo em direção a uma Sociedade Comunista?

- Se isto sucede nas sociedades socialistas, o quê se pode (e se deve) esperar no caso das sociedades capitalistas, inclusive no caso da sociedade brasileira?

- Qual tem sido para a Classe Trabalhadora, no caso da sociedade brasileira, década após década, o saldo da relação Sociedade-Estado (nas diferentes esferas da realidade)?

- Que balanço, por exemplo, se pode fazer da efetiva posição do Estado e seus respectivos aparelhos na correlação de forças entre os setores privilegiados e os setores majoritários da sociedade civil?

- O quê se tem conseguido efetivamente, a não ser migalhas, do gigantesco esforço em seguir-se apostando na capacidade do Estado, de reverter esse quadro, no essencial das relações entre os sujeitos em disputa?

- Quais as chances reais de buscar atender aos clamores da rua pela via da reforma do Estado? Será mesmo o Estado reformável? Que instâncias compõem o Estado? Ainda que houvesse chance – e não há! – de que o Executivo, graças a um golpe de vontade e de empenho de seus dirigentes, conseguisse fazer avançar, por exemplo, as reformas estruturantes, isto passaria, sem mais, pela Legislativo, dada a composição de classe aí reinante? E o que dizer do Judiciário? E das chamadas forças da ordem?

- Quais as reais chances de se reformar o Estado, por exemplo, pela via da reforma política, de modo a mexer com quesitos tais como: mecanismos eficazes de participação popular com relativa autonomia em relação ao Parlamento? E em relação ao controle democrático do Judiciário? E em relação à hipertrofia do Executivo? E quanto ao controle democrático dos eleitos, incluindo sua revocabilidade? E em relação à elaboração da política econômica (sistema tributário, critério de elaboração e gestão da peça orçamentária, mecanismos perversos de endividamento público, renúncia fisal, etc., etc.)? Por que será que, quando muito se alcança, a margem de manobra tem mais a ver com reforma eleitoral do que propriamente com reforma política?

- A quem, em última instância, cabe decidir sobre tais questões?

- O que representa, no essencial, apostar nas eleições como meio para renovar o quadro de dirigentes e de parlamentares? Ainda que se consiga uma renovação superior a 50% dos membros das distintas instâncias, o que nos garante que a nova maioria possa fazer de tão diferente, se as regras do jogo seguem inalteradas?

3. Importa fazer justiça aos clássicos, vencendo a tentação de reproduzi-los, e neles inspirando-nos em busca de ousar ensaiar passos heurísticos frente aos novos desafios  – É preciso, sim, é mesmo urgente retomar a leitura atenta e continuada dos clássicos, a começar de Marx, de Rosa Luxemburgo, de Gramsci, de Mariátegui, de Che Guevara, entre outros. E dos bons contemporâneos, também. Revisitá-los de forma ao mesmo tempo acolhedora, crítica e criativa. Eles/elas não merecem – nem querem – ser comodamente repetidos! Não obstante nossos reconhecidos limites, somos chamados a buscar reinventá-los/las, a partir de uma compreensão mais problematizadora dos novos e dos velhos desafios, sendo que estes apresentando nuanças e traços por vezes a requererem caminhos inovadores em seu enfrentamento. Tarefa gigantesca, complexa e abrangente, a envolver redefinições de instrumentos de luta, de caráter organizativo, do processo formativo, da arte de mobilização orgânica, sempre tomando em conta todo um espectro de condições novas, em relação às em que nossos clássicos atuaram e produziram suas obras magistrais. Tarefa que implica um novo jeito de trabalhar a memória dos clássicos, com uma postura dialogante, especialmente quanto a situações novas em relação ao tempo em que atuaram, sob tantos aspectos relacionais: gênero, geração, etnia, espacialidade/problemática sócio-ambiental, além de tantos outros de caráter produtivo, de consumo, de gestão, de convivência com toda a comunidade de viventes... Tarefa que implica profunda reavaliação de formas de militância, de estilo de militância e de militantes, o que passa também pelo longo e contínuo processo formativo. Tarefa que implica aprofundamento da discussão sobre categorias fundantes, a exemplo da compreensão do que seja hoje Revolução, revolucionário/revolucionária, a começar pela reavaliação do ainda superestimado componente militar nesse processo, que, em outros tempos, teve um lugar e um papel hipertrofiados, bem como em relação à tendência de reduzir-se Revolução à tomada do poder (donde a prevalência do elemento militar)...

Será que os novos tempos não nos apontam como tarefa o apostar na construção de uma nova sociabilidade, a requerer, não o abandono de sua grade de valores legada pelos clássicos, mas sobretudo o ousar ensaiar passos de alternatividade, nas relações sociais do dia-a-dia, na perspectiva de um novo homem, de uma nova mulher assim se tornando em processo ininterrupto, nos entrechoques das relações do dia-a-dia?

4. Que prioridades despontam como urgentes, nesse horizonte?

4.1) De fundo organizativo:
     * Em vez da tendência que ainda prevalece amplamente, de buscar dar conta das tarefas organizativas de âmbito exclusivamente local, não seria urgente também, sem prejuízo de seguir animando as instâncias organizativas no âmbito local, priorizar o horizonte do conjunto da Classe Trabalhadora, a cujos interesses devem estar articulados os de toda categoria ou de todo movimento com projeto alternativo de sociedade?
     * No terreno das incumbências de comunicação, será que não está na hora de assumir como rotina o hábito de se comunicar e atuar em rede
      * Nâo será urgente, igualmente, retomar e potencializar o esforço de organizar-se por núcleos (de local de trabalho, estudo ou de moradia), passando a ser, não exceção, mas rotina da luta organizativa?
     * Por mais que, no discurso, isto esteja na ordem do dia, mas ainda muito longe na prática desejável, não é chegada a hora de assegurar a alternância de cargos e funções, garantindo rotatividade na coordenação e nas tarefas de base para todos, para todas, de tal modo que tal prática não dependa da vontade ou da decisão individual dos dirigentes, mas corresponda a uma condição coletivamente assumida e observada?
     * Não obstante passos alvissareiros já se tenham dado, nesse particular, será que não urge tomar mais a sério o alimentar ferramentas de comunicação acessíveiso e com  gestão democrática na participação de todos?

4.2) De caráter formativo permanente e para além da educação escolar 
     * Passos animadores têm sido conquistados por parte dos movimentos sociais (inclusive indígenas, quilombolas e camponeses), no que se refere aos espaços de escolarização de seus membros (da Educação Infantil à Pós-Graduação), inclusive com sua participação ativa no processo. E isto deve continuar! Sem prejuízo disto, algumas perguntas merecem, no entanto, ser feitas: Devemos contentar-nos com as conquistas de escolarização formal? A despeito da participação dos movimentos sociais nesse processo de escolarização, quem é que, em última instância, tem a incumbência de definir e de controlar, senão o Estado? Será que devemos esperar que o Estado também forme os sujeitos dos movimentos sociais alternativos, ou é urgente assegurar um processo formativo contínuo, alternativo ao sistema que combatemos?
     * Será que podemos esquecer que, por sua natureza, o Estado serve, antes de tudo, aos interesses do Mercado? Basta que lembremos qual é a lógica das próprias propagandas oficiais: acabo de ver/ouvir a propaganda do PRONATEC, programa mantido pelo Estado, e dirigido aos jovens, mais ou menos nesses termos: “inscreva-se e faça os cursos que o Mercado espera que você faça”... Mais explícito, impossível!
     * Será que não cabe aos movimentos sociais e às demais organizações de base assegurarem, permanentemente, o processo formativo de seus membros (de base e da direção), para o que importa elaborar um programa permanente de estudos junto aos seus membros, em relação ao que é fundamental assegurar planejamento em comum, definir temáticas e atividades formativas, a serem trabalhadas, sempre de modo inter/transdisciplinar, sempre a partir dos interesses e aspirações da Classe Trabalhadora?
     * Nesse sentido, será que já não é hora de superar a tendência ainda dominante de se reduzir o processo formativo quase exclusivamente à formação política? E, pior, apenas às relações Sociedade-Estado, como se o fazer político não implicasse necessariamente outros espaços de exercício de cidadania, inclusive as densas relações do cotidiano, ou o exercício da política nas relações do dia-a-dia...  Sucede que o processo formativo vai bem além da dimensão estritamente política. Envolve várias outras dimensões – todas dinamicamente interconectadas -, dado que a Classe Trabalhadora implica uma notável diversidade de dimensões: gênero, etnia, espacialidade, geração, relação com o Planeta e toda a comunidade de viventes, a subjetividade, a afetividade, o intelectivo, a dimensão práxica, o exercício humanizador das artes, as relações com o Sagrado...

     * Exercitar a memória histórica (coletiva e individual) dos diferentes povos e seu rico e diversificado legado. Aqui também, toma relevância a (re)visitação dos clássicos, de suas obras principais, de sua biografia... nunca na perspectiva de copiá-los, de reproduzi-los, mas de dialogar abertamente com eles, com elas, tendo presentes os desafios de hoje...

      * Exercitar a necessidade de se ter aceso o rumo da caminhada (dimensão utópica): ainda que não se deva reincidir na asneira dos “projetos acabados”, enrijecidos, a-históricos, é fundamental exercitar os traços do projeto que defendemos, sem o que tenderemos a caminhar, fazendo mil coisas, sem atenção ao rumo que assume nosso agir (coletivo e individual).

..... * A mística revolucionária constitui um momento fundamental na caminhada coletiva e individual de quem busca manter-se antenado aos compromissos e à luta libertária dos condenados da terra...

4.3) Com permanentes mecanismos de debate e mobilização
     * Antenar-se com o que se passa nas lutas dos Trabalhadores e Trabalhadores e dos Povos do campo, das águas e das florestas de todo o mundo, inclusive por meio de documentários, entrevistas, filmes, relatos, textos e depoimentos, a exemplo dos seguintes:
- Revolução na Islândia:

- A servidão moderna:

- O veneno está na mesa:

4.4) Assegurar a continuidade do processo formativo para além dos momentos mais fortes (presenciais) do processo

Um processo formativo que se queira alternativo tem que ser permanente, tem que envolver seus protagonistas para além dos momentos formativos presenciais, de modo a garantir acompanhamento por parte dos formadores da trajetória dos formandos, por meio de um programa de estudos e de atividades teórico-práticas, a serem acompanhadas diuturnamente pela equipe de formadores.

Há de se combinar, sempre, atividades mais diretamente teóricas (por meio de práticas teóricas) com atividades e momentos de prática-prática, não apenas em relação aos companheiros e companheiras de turma, mas também com outros parceiros e aliados, e SOBRETUDO atividades que propiciem aos formandos fazerem uma experiência pessoal de mudança (para melhor!) de seu estilo de vida, de suas atitudes nas relações do dia-a-dia, em todos os espaços de que participem, de modo a interagir com situações concretas que perpassem as relações de classe, de gênero, de etnia, de espacialidade, de dimensão ecológica(cósmica), de geração, em situações ligadas às diferentes esferas da realidade social (econômica, política, cultural...). Ou seja, de modo a buscar que o processo revolucionário comece a se fazer desde já e desde dentro, e prossiga incessantemente de modo a alcançar também outras pessoas, em outros espaços...

Jão Pessoa, 16 de agosto de 2013.

sábado, 1 de setembro de 2012

Testamento de Dom Oscar Romero

A MISSÃO DA IGREJA

Dom Oscar Romero, Arcebispo de El Salvador

Discurso proferido por Dom Oscar Romero, por ocasião do recebimento da homenagem de honra,  conferida pela Universidade de Lovaina, em 2 de fevereiro de 1980, a apenas 50 dias do seu assassinato. Considerado seu testamento teológico e político, este texto nos dá o essencial de sua leitura do Evangelho e de sua vida de fé.

                A essência da Igreja está na sua missão de serviço oferecido ao mundo, para salvá-lo em sua totalidade, para salvá-lo na história, aqui e agora. A Igreja existe para ser solidária com as esperanças e as alegrias, com o sofrimento e as tristezas dos homens. Como Jesus, a Igreja existe para “trazer a boa nova aos pobres, para curar os que têm o coração ferido, para buscar salvar o que estava perdido.” (cf. Lumen Gentium, n. 8). Para dizê-lo com uma palavra, que é capaz de reassumir e concretizar tudo. O mundo, que a Igreja é chamada a servir, é para nós o mundo dos pobres. O nosso mundo salvadorenho não é uma abstração, não é simplesmente um exemplo ulterior do que nos países desenvolvidos como o vosso se entende por “mundo”. É um mundo que é constituído, em sua imensa maioria, por homens e mulheres pobres. É justamente deste mundo que dizemos ser a chave para se compreender a fé cristã e o agir da Igreja, e ao mesmo tempo, a dimensão daquela fé e daquele agir eclesiais. Os pobres são aqueles que nos dizem o que é a “pólis”, a cidade, e o que significa, para a Igreja, viver realmente no mundo. Permiti-me, então, a partir dos pobres do meu povo, que eu aqui represento, explicar brevemente a situação e o agir de nossa Igreja. O fato de constatar essas realidades e de deixar-nos tocar por elas, longe de nos distanciar da nossa fé, nos remeteu de volta ao mundo dos pobres como nosso verdadeiro lugar, nos impulsionou a incarnar-nos, como primeiro passo, no mundo dos pobres. Nele encontramos os rostos de que nos fala Puebla (cf. nn. 31-39). Aí encontramos os agricultores sem terra e sem trabalho estável, sem água e sem luz em suas pobres habitações, sem assistência sanitária, quando as mães precisam dar à luz, e sem escola quando as crianças começam a crescer. Aí nos encontramos com os operários que se acham desprovidos de direitos sindicais, que são demitidos pelas fábricas tão logo reclamem seus direitos, ficando à mercê de cálculos frios da economia. Aí nos encontramos com as mães e com as esposas dos desaparecidos e dos presos políticos. Lá nos encontramos com os habitantes de casebres, cuja miséria supera toda imaginação, e que experimentam o insulto permanente representado pelas ricas habitações vizinhas às suas. É, porém, neste mundo sem rosto que se faz atual o sacramento do servo sofredor de Iaweh, no qual a Igreja de minha arquidiocese tem buscado incarnar-se. Não digo isto com espírito triunfalista, pois é claro o muito que ainda nos falta, quanto a um maior avanço nesta incarnação. Entretanto, lembro este fato com imensa alegria, porque ccumprimos o esforço de não passar adiante, de não passar ao largo do ferido encontrado ao longo da estrada, e dele nos aproximamos como o bom samaritano. Tal aproximação ao mundo dos pobres, a entendemos, ao mesmo tempo, como incarnação e como conversão. Este encontro com os pobres nos fez recuperar a verdade central do Evangelho, no qual a Palavra de Deus nos chama à conversão. A Igreja tem uma boa nova a anunciar aos pobres. Aquelas mesmas pessoas que, durante séculos, só escutaram notícias cativas e vivenciaram realidades ainda piores, agora, por meio da Igreja, estão escutando a Palavra de Jesus: “O Reino de Deus está perto.” (Mc 1, 15). “Felizes os pobres, porque deles é o Reino dos céus.” (cf. Mt 5, 3). E, a partir daí, têm uma boa nova para anunciar aos ricos: que eles se convertam ao pobre, com ele compartilhando os bens do Reino... É uma novidade, em nosso povo, que os pobres hoje vejam na Igreja uma fonte de esperança e um apoio dado à sua nobre luta de libertação. A esperança de que a Igreja apóie não é ingênua nem passiva. É, antes, um apelo que assume uma dimensão da mesma palavra de Deus, no sentido de que as maiorias pobres assumam sua própria responsabilidade, para que tomem consciência de sua própria situação, para que criem sua própria organização – e isto num país em que, com uma intensidade que pode ser ora maior, ora menor, tudo isto vem legalmente ou na prática proibido. É, no entanto, uma defesa, talvez até crítica, das suas justas causas e reivindicações.
A esperança que pregamos aos pobres é para que seja restituída sua dignidade, é para lhes dar a coragem de serem. eles mesmos, os autores de seu próprio destino. Em uma palavra, a Igreja não apenas voltou-se para o pobre, mas faz dele o destinatário privilegiado de sua missão, uma vez que, como recorda Puebla, “Deus toma sua defesa e os ama.” (n. 1142). A Igreja não só se incarnou no mundo dos pobres, dando-lhes uma esperança, mas se acha firmemente empenhada em sua defesa. As maiorias pobres de nossa nação são cotidianamente oprimidas e reprimidas pelas estruturas econômicas e políticas do nosso país. Entre nós, continuam sendo verdadeiras as terríveis palavras dos profetas de Israel. Entre nós, são tantos os que vendem o justo por uma moeda e o pobre por um par de sandálias (cf. Am 2,6), quantos são os que acumulam violência e rapina em seus palácios (cf. Am 3,10): quantos esmagam os pobres (cf. Am 4, 1); quantos apressam o reino da violência, deitados em leitos de marfim (cf. Am 6, 3-4); quantos ajuntam casa sobre casa e anexam campo a campo, até ficarem sozinhos na terra (cf. Is 5, 8). Estes textos dos profetas Amós e Isaías não são vozes distantes de muitos séculos, não são apenas textos que lemos com reverência na liturgia. São realidade cotidiana, cuja crueldade e intensidade experimentamos a cada dia. Esta defesa dos pobres, num mundo gravemente conflitivo, provocou algo de novo na história recente de nossa Igreja: a perseguição. Vós já conheceis os dados mais importantes. Em menos de três anos, mais de cinqüenta sacerdotes foram atacados, ameaçados, caluniados. Seis deles já são mártires, assassinados, vários outros foram torturados e alguns expulsos. Até as religiosas têm sido alvo de perseguição. A emissora do arcebispado bem como outras instituições educacionais católicas e de inspiração cristã têm sido todas constantemente atacadas e ameaçadas, e artifícios mortais têm sido explodidos contra as mesmas, com propósito de intimidação. Numerosas casas paroquiais foram investigadas... Um fato é certo: que nossa Igreja vem sendo perseguida, nos últimos três anos. Mas, ainda mais importante é considerar as razões por que ela vem sendo perseguida. Não foi perseguido um sacerdote qualquer, nem tem sido atacada uma instituição qualquer. Tem sido perseguida e atacada aquela parte da Igreja que se pôs ao lado do povo pobre e se levantou em sua defesa. E, de novo, encontramos nesses fatos a chave que nos permite compreender a perseguição da Igreja: os pobres. São, de novo, os pobres que nos fazem entender o que realmente aconteceu. E ´por isso, a Igreja começou a compreender a perseguição justamente a partir dos pobres. A perseguição foi provocada pela defesa dos pobresx e ela não tem feito nada mais do que cuidar do destino dos pobres. A verdadeira perseguição foi dirigida ao povo pobre que hoje é o corpo de Cristo na história. Estes são os que completam em seu corpo o que falta à paixão de Cristo. E também é por esta razão que a Igreja, uma vez que escolheu organizar-se e reunir-se em nome das esperanças e do sofrimento dos pobres, foi ao encontro da mesma sorte de Jesus e dos pobres: a perseguição...  Esta opção pelos pobres é o que explica a dimensão política de sua fé. Como algo que está nas próprias raízes e nos próprios traços fundamentais. E porque ela fez opção pelos pobres concretos e não imaginários, e porque fez opção pelos verdadeiros oprimidos e verdadeiros reprimidos, que agora a Igreja vive no mundo da esfera política, e que ela se realiza, como Igreja, inclusive através dessa esfera. Por outro lado, não poderia ser diferente, se, como Jesus, se dirige em direção aos pobres. Mais. No curso deste processo que levou a Igreja a tomar posição diante da concreta e real situação sócio-política, a mesma foi se aprofundando, o próprio Evangelho foi mostrando a mesma riqueza. E assim, em primeiro lugar, sabemos melhor que assim é o pecado. Sabemos que a ofensa dirigida a Deus é a morte do homem. Sabemos que o pecado é realmente mortal, e não simplesmente pela morte interior de quem o comete, mas também pela morte física e objetiva que produz. Desse modo, fazemos memória do que é o dado profundo de nossa fé cristã. Pecado é o que obteve a morte ao Filho de Deus. Esta verdade fundamental da fé cristã – nós a vemos a cada dia nas situações do nosso país. Não se pode ofender a Deus, sem ofender o irmão. É a pior ofensa a Deus, o pior dos secularismos é, como já o disse um dos nossos teólogos, “o transformar os filhos de Deus, templos do Espirito Santo, o corpo histórico de Cristo, em vítimas da opressão e da injustiça, em escravos de apetites econômicos, em objetos descartáveis da repressão política; o pior dos secularismos é a negação da graça através do pecado, é a objetivação deste mundo como presença operante das potências do mal, como presença visível da negação.” (p. 1, Ellacuría). Por isso denunciamos a idolatria que, no nosso país, se faz da riqueza, da propriedade privada absolutizada no sistema capitalista, do poder político nos regimes de segurança nacional, em nome dos quais se institucionaliza a insegurança dos indivíduos (Quarta Carta Pastoral, nn. 43-48)... Em segundo lugar, agora sabemos melhor o que significa incarnação, o que significa Jesus haver assumido uma carne realmente humana, e ter-se Ele feito solidário com seus irmãos no sofrimento, nos prantos e lamentos, na oferta. Sabemos que não se trata diretamente de uma incarnação universal, que é algo impossível, mas de uma incarnação preferencial e parcial: uma incarnação no mundo dos pobres. É a partir deles que a Igreja poderá ser para todos, que a Igreja poderá prestar também um serviço aos poderosos, através de uma pastoral de conversão; mas, não vice-versa, como tantas vezes é entendido. O mundo dos pobres, com características sociais e políticas bastante concretas, nos ensina onde é que a Igreja deve incarnar-se, para evitar aquela falsa universalização, que acaba sempre por transformar-se em conivência com os poderosos. O mundo dos pobres nos ensina como deve ser o amor cristão que por certo busca a paz, mas também desmascara o falso pacifismo, a resignação e a inação que deve ser certamente gratuito, mas também deve procurar a eficácia histórica. O mundo dos pobres também nos ensina que a natureza sublime do amor cristão deve passar pela imperiosa necessidade de um empenho para que justiça se faça às maiorias, sem se fugir à luta honesta. O mundo dos pobres nos ensina que a libertação chegará, não no dia em que os pobres forem meros destinatários de benefícios prestados pelos governos e pela própria Igreja, mas no dia em que eles se tornarem, na primeira pessoa, atores e protagonistas da própria luta e de sua própria libertação, desmascarando de tal modo a raiz última dos falsos paternalismos, inclusive os eclesiais. O mundo concreto dos pobres nos ensina também em que consiste a esperança cristã. A Igreja prega novos céus e nova terra, e sabe que nenhuma configuração sócio-política pode vir trocada pela plenitude final que somente Deus concede. Mas, a Igreja também aprendeu como a esperança transcendente deve conservar nos sinais da esperança histórica, por quanto se trate de sinais tão simples, na forma de sua presença, como são aqueles proclamados no “Terceiro Isaías”, quando diz: “Construirão casas e nelas habitarão; plantarão vinhas, e comerão do seu fruto.” (Is 65, 21)... A fé é aquela que brota, num primeiro momento, para incarnar-se no mundo sócio-político dos pobres, e para encorajar os processos de libertação, que também são sócio-políticos. E esta incarnação e esta práxis, por sua vez, dão concretude aos elementos fundamentais da fé... Antes que fornecer-vos uma análise detalhada de todas as oscilações da política do meu país, preferi explicar-vos quais são as raízes profundas da ação da Igreja neste mundo tão explosivo que é o mundo sócio-político, e tentar ilustrar-vos, falando-vos do mundo dos pobres, que é o critério último – teológico e ao mesmo tempo histórico – que, neste campo, guia a ação eclesial. A segunda atitude que assume, nos confrontos no mundo dos pobres, nos confrontos do povo pobre, a Igreja, a partir de sua própria especificidade, acaba ou por sustentar ou um ou outro projeto político. Acreditamos que esta seja a maneira com que conservar a identidade e a mesma transcendência da Igreja. Inserir-nos no concreto processo sócio-político do nosso povo, julgá-lo a partir do povo pobre e promover todos os movimentos de libertação que conduzam realmente a que as maiorias gozem de justiça e paz. E acreditamos ser este o modo pelo qual conservar a transcendência e a identidade da Igreja, porque é deste modo que conservamos a fé em Deus. Os cristãos do tempo antigo diziam: “Gloria Dei, vivens homo.” (A glória de Deus é o homem vivo.). Nós podemos reformular, em termos mais concretos, este conceito, afirmando: “Gloria Dei, vivens pauper.” (“A glória de Deus é que o pobre viva.”). Cremos que, a partir da transcendência do Evangelho, nós possamos julgar em que consiste a vida dos pobres, e cremos também que, pondo-nos ao lado do povo, e buscando dar-lhe vida, conseguimos saber em que consiste realmente a eterna verdade do Evangelho.

(Trad. da versão italiana: Alder Júlio F. Calado)
Outubro/2010

DESPRIVATIZANDO O ENTENDIMENTO DA AÇÃO DO ESPÍRITO SANTO: notas sobre o livro O Espírito no Mundo, de autoria de José Comblin

Alder Júlio Ferreira Calado


            O livro não é tão recente. Foi editado pela primeira vez em 1978, pela Vozes. Lá se vão mais de trinta anos. No mundo de então, a conjuntura era de crise do Capitalismo, em mais uma de suas famigeradas crises cíclicas. Às voltas, então, com o problema do petróleo, do aumento de preços, combinado com o progressivo escasseamento das fontes energéticas não-renováveis.
            Na esfera da Igreja Católica Romana, eram os últimos dias do pontificado de Paulo VI, forte em seus inícios em plena realização do Concílio Vaticano II, e já combalido pelas forças conservadoras que apostavam na derrocada do espírito do Vaticano II.
            Na América Latina, a despeito do venturoso impulso de Medellín (1968), vivia-se um “rumor de botas” (Eder Sader). Um tempo de intensa repressão protagonizada pelas ditaduras civil-militares (e até civil-miltar-eclesiásticas, no caso da Argentina), especialmente no Cone Sul: Brasil (a partir de 1964), Chile (1973), Argentina (1976), além do Uruguai e do Paraguai...
            Na América Central, vivíamos um tempo de esperança no enfrentamento da ditadura de Somoza, finalmente derrotada pelas forças sandinistas, com decisiva participação dos cristãos,, a partir de 1979. No Brasil, a despeito da vigência do regime militar, este dava provas de enfraquecimento, graças à crescente mobilização da sociedade civil, bem representada por movimentos sociais populares que se mostrariam vigorosos (início do Movimento pró-PT, mobilização pela Anistia aos exilados e presos políticos, papel ativo da CNBB, da ABI, da OAB... Ao interno da Igreja Católica e de outras igrejas cristãs, vivia-se um período auspicioso de expansão das CEBs, da Teologia da Libertação, em breve, da “Igreja dos Pobres” ou também chamada “Igreja na base”.
            Nessa época, o Autor do livro ainda vivia seu exílio no Chile (em Talca, mais precisamente), expulso que havia sido do Brasil (1972) e do próprio Chile (em 1980,, pela ditadura de Pinochet que, pela truculência d o golpe de Estado contra o o Governo de Salvador Allende, em 1973, espalhou o terror e a tortura).
            É justamente a partir de suas experiências eclesiais concretas vivenciadas em Recife (meados dos anos 60 até 71, quando foi expulso do Brasil), em Santiago e em Talca, no Chile, bem como em Riobamba, no Equador, que ele vai elaborando sua abordagem inovadora da ação do Espírito Santo no mundo.
            No caso das experiências com a Igreja no Brasil, mais particularmente no Nordeste, tais contatos não cessariam, nem mesmo no período do exílio. A partir dos países que fazem fronteira com o Sul do Brasil, sempre encontrou formas de continuar os contato com os pobres  e os amigos do Brasil. Vale notar que este seu livro foi, inclusive, escrito em Português e publicado por uma editora brasileira, que dava um suporte relevante às experiências da base da Igreja e da Teologia da Libertação. Como não lembrar a experiência, por exemplo, da CEHILA Popular, com sua série de folhetos em linguagem popular?
            No caso do Pe. José Comblin, ele próprio um dos teólogos de maior referência da Teologia da Libertação, especialmente na expressão do que se havia cunhado como “Teologia da Enxada”, referência maior do seu trabalho no Nordeste do Brasil, junto a fecundas experiências comunitárias, inicialmente em Pernambuco (Tacaimbó) e na Paraíba (Salgado de São Félix), a partir de 69, e depois continuadas no exílio (a criação de seminários rurais, no caso). Seminários rurais que, tendo sido inicialmente aprovados pelo Papa Paulo VI, foram desaprovados já no início do pontificado de João Paulo II, o que levou a converter tais experiências num frutuoso trabalho de formação de missionários e missionárias leigos, em vários Estados, especialmente no Nordeste (Serra Redonda e Mogeiro  – PB, Colônia Leopoldina (AL), Juazeiro (BA), além de outras experiências semelhantes no Piauí e em Tocantins.
            É nesse contexto de notável efervescência social e eclesial, que elabora esse livro-projeto. De fato, nele o A. busca esboçar as balizas de uma abordagem pneumatológica alternativa à abordagem convencional dominante sobre a missão do Espírito Santo. “Livro-projeto”, dissemos, porque as balizas apenas esboçadas neste livro de 114 páginas vão ser ter desdobramentos relevantes numa série de livros ulteriores: O Tempo da Ação (1982), A Força da Palavra (1986), O Espírito Santo e a Libertação (1987), Vocação para a Liberdade (1999), Povo Deus (2002) e Vida em busca da Liberdade (2007), e mais outros (um deles, aliás, A Liberdade Cristã, data de 1977, editado pela Vozes), na medida em que se debruçam, cada um, sobre as características ou atribuições mais marcantes da missão do Espírito Santo no mundo. Atribuições estas já apontadas, quase sempre de explícito, no livro O Espírito no Mundo, há mais de trinta anos: Com efeito, no livro em tela, estão bem explicitadas as principais atribuições do Espírito Santo, a saber:
- “Povo de Deus” (p. 10:“O fato central, o efeito central da vinda do Espírito: a formação do povo de Deus.”);
- “Ação” (Espírito como ação eficiente, como vento impetuoso a agir na História, cf. Introdução do livro);
- “Liberdade” (p. 64:“Onde está o Espírito aí está a Liberdade”);
- “Palavra” (a Palavra, e não a guerra, é o instrumento do Espírito na formação do Povo de Deus (cf. pp. 38-40); ver também p. 76: “O Espírito atualiza a presença da da Palavra”; p. 40: “Ele fez de minha boca uma espada afiada” Is 49, 2);
- “Vocação”,  “Vida”... A cada uma dessas atribuições dedicaria o A. um livro específico, como mencionamos acima.
            Mas, aqui tratamos apenas do livro-projeto. Ele se reparte em seis capítulos: o primeiro intitula-se “Um só corpo e um só espírito”; “O pensamento de Cristo” é o segundo; o terceiro capítulo versa sobre a força da Palavra, focando o testemumho do Espírito no mundo; o quarto capítulo tem por título “Onde está o Espírito, aí está a Liberdade”; “O penhor do Espírito” é como se intitula o penúltimo capítulo, versando sobre a Vida; e o sexto e último capítulo trata de “Os dons espirituais”.
            Desde o início do livro, Comblin atribui também ao nome “Espírito” uma das dificuldades de compreensão mais efetiva da missão do Espírito Santo, do Sopro divino, do vento impetuoso que soprou em Pentecostes e continuar a fazer hoje sua missão.
             Já na Introdução, trata o A. de justificar sua reflexão, ao lembrar a tendência dominante de uma compreensão muito limitada da ação do Espírito Santo, a quem se invoca para assuntos internos e particulares da Igreja, tais como celebrações, devoções e fins semelhantes. Compreensão limitada também era a dos discípulos de Jesus. Mas, ao longo da história do Povo de Deus, essa compreensão vai se ampliando, embora sofra grande oscilação. Inquieta-o o fato de, ainda hoje, ser freqüente uma interpretação “interna corporis” da ação do Espírito Santo e seus dons ou “como uma experiência privada, pessoal, interior.” (p. 8).

“Um só corpo e um só espírito”

            É com esta remissão a Ef 4,4 (combinada com o capítulo 2 da mesma Carta), como de resto a todo o belo capítulo 4, que é dedicado o primeiro capítulo do livro. A certa altura, ao comentar a ação do Espírito, que é a da formação do Povo de Deus, constituído de numerosas pequenas comunidades na base, cada qual com sua autonomia, mas profundamente ligadas por laços afetivos e efetivos de unidade, o A. trata de explicitar o sentido da citação: “S. Paulo nunca separa os dois pólos da ação do Espírito: a formação de inúmeras pequenas comunidades na base e a unificação de todas num só povo;” (p. 22).
            Começa buscando entender o motivo dessa dificuldade de se compreender o sentido da missão do Espírito Santo. E parte da dificuldade mesma do nome “Espírito”. Argumenta que tão grave é o problema de tradução para as línguas européias, especialmente para o grego e para o latim, que a tradução (“Espírito”) termina conotando até o sentido contrário ao termo bíblico, na medida em que “Espontaneamente “espírito” evoca a idéia de não-matéria, imaterial.” (p. 9), enquanto que na língua semítica, “o Espírito Santo significa a força de Deus, uma força de tempestade, como uma força do vento, a força do temporal, a força dos tufões.” (p. 10). Eis por que, completa o A. mais adiante, “Ao prometer e anunciar a vinda do Espírito, Jesus abre o caminho para a força de Deus: a força que criou o mundo, volta a esse mundo para refazê-lo, completa-lo e levar ao seu destino final.” (p. 10).
            O cerne do primeiro capítulo consiste em ressaltar a especificidade da vinda do Espírito Santo. A esse respeito, é relevante observar o que afirma Comblin acerca da grande missão do Espírito Santo; ao sustentar que “O fato central, o efeito central da vinda do Espírito Santo: a formação do povo de Deus.” (p. 10).
            É, com efeito, o propósito do Espírito Santo: a formação do povo de Deus comportando o conjunto da Humanidade, na ótica da universalização da salvação. Razão pela qual o A. também faz distinção entre povo e massa, para enfatizar a missão do Espírito Santo, ao longo da História, que é transformar a massa em povo, o povo  de Deus. Um povo que vai tomando consciência de sua identidade, a partir dos excluídos que vão sendo reunidos, conscientizados, organizados e mobilizados, na direção de se erigirem enquanto povo, povo Deus, portanto, consciente, autônomo, solidário, uno em sua diversidade. Aqui se percebe a marca de interculturalidade atestada pelo povo de Deus, cuja unidade se faz a partir de sua ampla diversidade.
            Processo cujo chão/espaço o próprio Jesus revelou, para escândalo dos judeus (e dos ocidentais de hoje!), ser bem mais amplo do que o Estado de Israel... O novo Israel agora é sem fronteiras. Abrange o mundo inteiro, todos os povos, a Humanidade. Eis o Povo de Deus! Desse Povo em permanente construção a Igreja, as igrejas cristãs, são chamadas a se tornarem a serviço. Com o cuidado de não sucumbirem à tentação de aprisionarem o Espírito em suas amarras institucionais. Risco que tem marcado a caminhada histórica das igrejas cristãs, até hoje...
            As igrejas só ajudam na formação do Povo de Deus, na medida em que contribuem para que esse Povo tome consciência de sua vocação à Liberdade do Reino; na medida em que se vá comprometendo a ser participante ativo desse processo. Infelizmente, raramente encontramos testemunhos edificantes das igrejas cristãs, nessa sua missão. Um dos obstáculos nessa caminhada é a vã aposta em que tal missão seja confiada a figuras ou grupos privilegiados (o A. se refere às“elites”). Trágico equívoco. Só a partir das massas próprias é se vai descortinando esse horizonte, e se realizando essa caminhada libertadora: “Na idéia de Jesus, o verdadeiro povo de Deus está nessas massas abandonadas que precisam ser ajudadas e levantadas.” (p. 15). O processo tem que ser feito de baixo para cima, “com a força do Espírito Santo”. Ou não vingará. Até porque o papel histórico das elites tem sido o de só cuidam de manter e ampliar seus privilégios, ainda que isso se faça em nome de Deus. E como se faz!
            Povo que se vai fazendo num processo contínuo, ininterrupto. A esse respeito, o acontecimento de Pentecostes constitui uma realidade emblemática. Já não mais se trata de criar leis a serem inscritas em códigos, em tábuas, mas inscritas nos corações. Em Pentecostes, “O Espírito já não é reservado aos puros profetas que aparecem de vez em quando. Agora todos são profetas.” (p. 17).
            Uma tal infusão do Espírito vai implicar desafios, certamente. Os aparelhos sagrados são sempre controlados com mão de ferro por um pequeno número, que se sente ameçado, em seus privilégios, por essa ousadia do Espírito, a comunicar-se a quem entenda fazê-lo. Por exemplo, aos pagãos, às “ovelhas perdidas da casa de Israel”. A ação do Sopro divino não aceita fronteiras, esparrama-se por todo o mundo. Mais: “força” seus vocacionados a acatarem o desafio. Pela força de Pentecostes, por exemplo, “Pedro compreendeu que as barreiras estavam destruídas: “Poderá alguém recusar a água do batismo a esses, que recebeu o Espírito Santo da mesma forma que nós?” (At 10, 47) (p. 18). Tal foi o impulso do Sopro Divino, e o acatamento dos discípulos, que em pouco tempo, o Povo de Deus já era constituído, em sua maioria, de ex-pagãos! É a essa experiência que o A. chama de “lançamento do povo de Deus”.
            Um desafio constante tem sido a luta acirrada entre duas tendências: de um lado, os controladores da ação do Espírito, que, para defenderem seus privilégios, não hesitam em criarem intermináveis barreiras para acolher “as ovelhas perdidas da casa de Israel. Para tanto, não hesitam em multiplicar os obstáculos e suas defesas, por meio de leis, de normas, de mecanismos burocráticos. Está ai há muito tempo a Cúria Romana como um exemplo concreto de obstáculo à formação do Povo de Deus. Por ouro lado, a contínua ação profética das “minorias abraâmicas”, a resistirem pela força do Espírito.
            Resistência e ação instituinte tanto mais fecundas quanto conseguem não perder de vista o horizonte de Povo de Deus, fundado no Projeto de Deus (Carlos Mesters). Se é certo que mesmo o desenho desse Projeto não aparece nunca completamente delimitado, não menos certo também é que apresenta traços convincentes de seu perfil. No livro em apreço, Comblin enfatiza alguns pontos fundamentais. Um deles é a tensão que ele implica entre unidade e diversidade, sobre o qual voltaremos mais adiante. O rosto do Povo de Deus comporta uma ampla diversidade cultural que caracteriza tantos povos, espalhados por todo o mundo. Essa diversidade é, ao mesmo tempo, alimentada pela busca de unidade (não uniformidade), fundada em valores como solidariedade, partilha, serviço, autonomia, liberdade, entre outros traços.
            Chama a atenção o caráter alternativo subjacente a esse desenho de organização social, sobretudo pelo forte investimento no que costumo chamar de cultura consultiva, isto é, na aposta a uma organização com base em conselhos de base, com caráter deliberativo. Na interpretação de Comblin, aquela forma de organização comporta elementos não menos relevantes: o povo de Deus não pode ser constituído por grupos isolados, mas de pequenas comunidades zelando por sua autonomia e, ao mesmo tempo, sentindo-se parte de um povo, do mesmo Povo de Deus. Nos termos do A., referindo-se à ação missionária animada pelo Apóstolo Paulo, junto aos Coríntios, “os grupos se sabem representativos das suas cidades: são as primícias da cidade e sua ambição é a animação da cidade toda, inteiramente chamada a achar o seu lugar no povo de Deus. Entendemos que, na idéia de Paulo, o povo de Deus seria como uma confederação de cidades livres espalhadas no mundo inteiro, cada uma sendo uma parte do povo, cada uma autônoma e mantendo laços de amizade e intercâmbio com as outras, mas sem nenhuma dominando outras.” (pp. 21-22). Para o A., é uma constante nos escritos paulinos sua inquietação com esses dois pólos da ação do Espírito a conduzir as comunidades: de um lado, a formação de inúmeras comunidades; de outro, a busca da unidade, em busca da formação de um só Povo de Deus.
            Nesse movimento, aparece um desafio: qual deve ser o comportamento do Povo de Deus, em suas relações com outros povos? Na dinâmica animada por Paulo, a julgar por Rm 13, 1-7, há nele uma aposta otimista na tecelagem dessas relações. Paulo passa uma visão otimista das autoridades (e do império), a quem todos da comunidade devem obediência, pelo fato de serem representantes de Deus. Como afirma Comblin: “São Paulo não dá a impressão de prever conflitos graves e gerais com o império.” (p.23). Mesmo assim, como antes (p. 27) havia lembrado, aliás, o próprio A., convém não perder de vista aspectos reveladores de sua confiança nos pobres, e de sua desconfiança nos poderosos, como se percebe, por exemplo, no primeiro capítulo da Primeira Carta aos Coríntios: “O que é fraco para o mundo Deus o escolheu para confundir os fortes; o que é vil e desprezível ao mundo, Deus o escolheu, como também aquilo que não é nada, para destruir aquilo que é.” (1 Cor 1, 27-28).
            A posição de São João, por seu lado, com base no relato do Apocalipse, apresenta-se antes pessimista. Para João, há um hiato insolúvel entre as forças que governam o mundo e as que representam o Projeto de Deus. E aponta a pregação alternativa dos profetas. Comblin afirma que a caminhada do Povo de Deus oscila entre essas duas posições, aí predominando uma tensão. De todos os modos, o A. lembra o risco de se apostar ingenuamente num alinhamento incondicional. È preciso manter uma postura crítica, de autonomia em relação aos poderes.
            Seja como for, importa não perder de vista que, apesar de tantas tentativas históricas frustradas (o A. lembra, inclusive, a da criação da Internacional dos Trabalhadores), o Povo de Deus tem que continuar tentando uma alternativa a essa ordem dominante, que não se coaduna com a vocação do Projeto de Deus, afinal de contas “O Espírito está agindo como fermento, nesse sentindo, suscitando sempre novas tentativas e iniciativas.” (p. 26).
           
O dom de entender quem é Jesus

            Na admirável concisão com que é tecido o segundo capítulo do livro (menos de dez páginas), o A. trata de destacar as linhas-mestras do pensamento de Jesus, a quem o Espírito confere toda a primazia. Para tanto, cuida de dissipar vários equívocos, como o de se atribuir o conhecimento de Jesus a membros da hierarquia pelo único motivo de conhecerem bem sua biografia, ou de pronunciarem seu nome com freqüência ou terem dele aprendido conceitos e definições: “Sacerdotes acham que conhecem Jesus porque falam nele o dia todo, desde o seminário. Religiosos acham que o conhecem porque invocam o seu nome o dia inteiro, desde o noviciado. Catequistas acham que o conhecem porque o ensinam, durante anos.” (p. 28). Lembrando que o verdadeiro conhecimento de Jesus é obra do Espírito Santo, o A. trata de dissipar uma noção superficial de Jesus, produto de emoções e sentimentos humanos generosos como o de Pedro, em sua afoita promessa de fidelidade feita a Jesus, antes da Paixão... Conhecer Jesus vem menos por uma noção de sua biografia do que por tê-lo presente nos desafios da atualidade, “Pois o que queremos e devemos conhecer é o Jesus atual, o Jesus ressuscitado que age na história e age atualmente como agirá no futuro.” (p. 30).
            Nesse sentido, desponta realmente deslumbrante a ação do Espírito Santo. Jesus, por diversas vezes, como se percebe no Evangelho de São João (14-16), em que Jesus justifica a vinda do Espírito Santo, e dá pistas bem concretas sobre seu papel, sua missão. Muitas coisas que haviam passado ao largo da compreensão dos discípulos, durante o tempo da breve convivência com Jesus, caberia ao Espírito Santo esclarecê-las, ensiná-las mais a fundo, rememorá-las. E não se tratava de limites apenas de caráter do entendimento. Também havia os limites éticos: a sedução pela sabedoria humana, pelo poder, pelo prestígio, pela segurança. “Uma vez uma pessoa submergida nos processos e nos atos da história, seja da carreira pessoal, seja dos problemas de família, seja naa estratégias da sua empresa, do seu partido, da sua nação, ele já nem se lembra de Jesus” (p. 35).
            Havia outras tantas tarefas que os discípulos de Jesus não estavam em condições de entender nem de assumir, sem o envio do Espírito Santo, a quem caberia igualmente revelá-las. Isto tem um sentido realmente revolucionário. Nem tudo o que Jesus tinha a dizer, os discípulos podiam alcançar, dados os limites de ordem vária. Seria missão do Espírito Santo.
            É aí que aparecem numerosos obstáculos, dos quais o maior de todos é a busca de segurança, é a tentação de seguir a prudência humana sempre mandando evitar os perigos, a respeito dos quais o próprio Jesus já prevenira como necessários a quem se dispõe a segui-Lo. Seguir Jesus passa a ser algo tão perigoso, que se torna “Impossível que uma paróquia, uma diocese, uma congregação religiosa, um movimento cristão enxergue de maneira permanente as coisas assim como Jesus enxerga.” (p. 33).
            Se não for pelo Espírito Santo, não logramos conhecer Jesus. Esta é precisamente sua missão, anunciada por Jesus, por exemplo, em Jo 14, 26: “O Espírito Santo que o Pai vos há de enviar em meu nome, ele vos ensinará todas as coisas e vos trará à memória tudo o que eu vos disse.”
            Não se tratará, contudo – adverte Comblin, em várias passagens -, de um ensino abstrato, estritamente intelectual. Trata-se, sim, de um ensinamento que passa pela experiência concreta. Experiência, inclusive, da cruz como ante-sala da ressurreição. Neste caso, de pouco aproveitam as emoções que se derramam profusamente pelas igrejas, em momentos de louvação. É sobretudo nas horas conflitivas mais sombrias, mais cruciais, que se costuma fazer a experiência do Espírito, como nas ocasiões de perseguições e de martírio. É assim que procede o Espírito, no processo de formação do Povo de Deus, graças à fecundidade da Palavra.
           
Como o Espírito forma o Povo de Deus

            No terceiro capítulo (pp. 38-53), o A. vai tratar fundamentalmente da pedagogia do Espírito Santo, refletindo sobre os instrumentos de que Ele se serve no processo de formação do Povo de Deus. Aqui desponta a Palavra como a arma por excelência, de que faz uso o Espírito, em contraste efetivo com a tendência dominante entre os povos: cada um, para se afirmar enquanto povo acima dos outros, recorre ao poder das armas como seu instrumento de referência. Sua vitória é garantida pela violência, pelo poder bélico. Na formação do Povo de Deus, todavia, é a força da Palavra o instrumento pedagógico utilizado pelo Espírito. E aqui assume lugar privilegiado a figura de Jesus. Especialmente de Jesus como profeta. Várias passagens dos evangelhos mostram como se deu sua investidura de profeta, como no episódio do Batismo.
            Jesus se apresenta como o Enviado do Pai, cuja missão é ser Palavra. Palavra afiada como uma espada, como ocorrera, antes, a Isaías, a Jeremias e a outros profetas. Ao mesmo tempo, na continuação da linha profética do Antigo Testamento e na adoção de elementos de ruptura com aquela linha profética, Jesus vai se apresentar como profeta. Na continuidade daqueles, Jesus profeta denuncia as injustiças, a opressão dos poderosos; anuncia um novo tempo, uma nova humanidade. Diferentemente daqueles, Jesus já anuncia a chegada do Reino de Deus. Jesus já se manifesta como a realização das promessas. Uma realização cuja plenitude vai acontecendo após Sua ressurreição, e com o protagonismo do Espírito Santo. Jesus é a Palavra anunciada, enquanto sua plena efetivação vai se dar com a atuação do Espírito no mundo, contando com a participação dos discípulos do Movimento de Jesus. Nesse sentido, Jesus é a Palavra, para além de sua missão estritamente terrestre. É Palavra ao longo de toda a História. (cf. p. 41). Pela força dessa Palavra, os discípulos e discípulas de Jesus, à medida em que vão tomando sua estrada, passam a ser agentes colaboradores na formação e animação do Povo de Deus. Fundamentado em Jô 4, 23s, o A. afirma que passa a ser a Palavra o verdadeiro culto. (cf. p. 41). Interessante registrar o que o A. observa: antes da Ressurreição, Jesus era conduzido pelo Espírito Santo; após a Ressurreição, é Jesus quem passa a tomar a iniciativa: é Ele quem faz o envio do Espírito: “Antes da ressurreição, Jesus era portador das palavras de Deus e era conduzido pelo Espírito” (...) “Contudo, após a ressurreição, houve uma transformação: Jesus toma a iniciativa.”. (pp. 43-44).
            Em sua vida terrestre, coube à Palavra chamar e reunir seus discípulos. Uma vez ressuscitado, é o Espírito quem vai agir pela força da Palavra, enviando os discípulos e discípulas do Seguimento de Jesus, ao longo da história, confiando-lhes a tarefa de formar o Povo de Deus, enviando-os a criar comunidades, sempre pelo caminho da Liberdade, sem forçar ninguém a acolher a Palavra, mas propondo uma vida nova, sobretudo aos desprezados, aos marginalizados, aos pobres.
            Só a experiência do Espírito nos permite compreender o verdadeiro sentido de sua ação: “A partir de tal experiência é que se pode compreender qual é força do Espírito: é aquela força que se revela no evangelho para suscitar comunidades”. (p. 49).
            Experiência que só é possível viver, quando se mergulha, de peito aberto, não no poder da lei, mas no Evangelho da Liberdade do Espírito. Inspirado em Paulo, o A. dedica algumas páginas deste capítulo a mostrar vários pontos que fundamentam a oposição entre o “ministério do evangelho” e o “ministério da letra”. Este se apóia na lei, em normas, em doutrinas, desembocando não raro na inércia característica do trabalho desenvolvido pelas estruturas eclesiásticas, razão por que se torna funcional a todas as elites, clericais e outras igualmente centradas no poder das autoridades: “O ministério da letra é uma imposição, uma forma de dominação das almas.” (p. 47). Por outro lado, “O ministério do evangelho fica na linha do ministério profético: por isso Paulo assimila a sua própria vocação a uma vocação profética (Gl 1, 15-16).” (p. 45). Daí a vitalidade dos trabalhos comunitários realizados sob o Sopro divino, a exemplo do acontecimento Pentecostes, com a aquele derramamento de dons sobre todos. Todos chamados à missão profética, o que supõe uma obediência à voz do Espírito que sopra onde quer, mas sempre respeitando a liberdade do atendimento, que se acha condicionado a uma série de barreiras, entre as quais o apego ao poder, à segurança, aos bens, razão por que é junto aos pobres que o Espírito recebe mais acolhida, e entre os quais os frutos aparecem com profusão. Neles a Palavra é multiplicada. (cf. pp. 50-53).
            O A. enfatiza a densidade profética da atuação de Jesus, ao explicitar para quem veio: “Eu não fui enviado a não ser para as ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15, 24. Mesmo sentido, aliás, afirmado em Mt 10, 6).
           
Pelos caminhos da Liberdade

            A partir daí, e sempre biblicamente bem fundamentado, o A. vai mostrando os desdobramentos dessa missão, pelos caminhos da Liberdade do Espírito. Ao longo das mais de vinte páginas correspondentes ao quarto capítulo, Comblin vai assinalando os embates e confrontos do Povo de Deus pelos caminhos da Liberdade do Espírito. Embates contra a morte. Tendo Jesus vencido a morte, somos com Ele chamados a uma vida de ressuscitados, vencendo o medo e as barreiras que nos impedem de fazer os caminhos da Liberdade do Espírito. Batalhas contra o pecado, aqui entendido em sua dimensão estrutural. Mais tarde, a Teologia da Libertação designaria essa luta como nossa disposição de vencer o “pecado social”. A libertação do pecado implica romper a submissão à carne (na acepção paulina), isto é, romper com as seguranças humanas depositadas no sistema, nos poderosos e suas estruturas. “O pecado consiste em pôr toda a sua confiança e segurança nos poderes da carne: confiar no dinheiro, nas armas, no prestígio, , na superioridade intelectual” (p. 60). Para romper com tal estrutura, o Espírito inspira pessoas que vão se libertando da escravidão do sistema, à medida que tam´bem vão se dedicando a ajudar pessoas e grupos a superarem a escravidão ao sistema, em suas relações econômicas, políticas e culturais. Nesse sentido, “Só é possível superar as estruturas de pecado a partir do momento em que existam pessoas capazes de pensar no bem dos outros independentemente do bem próprio.” (pp. 61-62).
            Distingue o sentido de povo de Deus em relação às pretensões dos chefes de Israel, que restringiam a si próprios, à sua pátria, à sua nação, ao seu território, à sua cultura, todo o povo de Deus. A Lei para eles era tudo, e aí repousava o sentido de sua vida. O sistema lhes bastava, e não hesitavam em assumi-lo como a última palavra. É Paulo, um exímio conhecedor da Lei, uma vez convertido, quem ousa desmascarar esse sistema, como lembra o A, ao citar o prórpio Paulo.(Rm 7, 6):“Agora emancipados da lei, estamos mortos para a lei que nos trazia presos, a fim de servirmos conforme o novo Espírito, e não à antiga letra.” (pp. 63-64).
            Vale, porém, o alerta do A. quanto à atualidade dessa afirmação paulina. Não se trata de uma advertência válida apenas para as comunidades eclesiais primitivas. Hoje, também, o alerta continua pertinente. Eis por que, após remeter à ação profética de Paulo em relação aos Gálatas, o A. nos adverte, a justo título: “Voltar à escravidão da lei não é somente problema para os Gálatas. Foi e ainda é problema da Igreja: o apego às formas e ao sistema gera múltiplas injustiças, falta de misericórdia, dominação sutil mas cruel. O mesmo apego gera uma tremenda inércia de estruturas, uma preguiça, uma falta de chamas e caridade, uma frieza no meio às necessidades dos homens. Frente aos problemas do mundo, o apego à letra e à lei faz com que os membros da Igreja se assustem e reajam como todos os demais, buscando segurança, cuidando da sua sobreviência, escutando os conselhos da prudência humana, quer dizer, da inércia dentro das coisas seguras” (p. 64).
            Não menos instigante e profeticamente provocativa é a extensão da denúncia feita pelo A. a outras forças para além do âmbito eclesiástico. Com efeito, é assim que, com toda a propriedade e atualidade, ele adverte: “Fora da Igreja os mesmos comportamentos acontecem com muito mais razão ainda. Os grupos sociais, as nações, os partidos, as instituições apegam-se a seu sistema com medo de perder a sua identificação, a sua sobrevivência. Defendem o seu sistema de todas as maneiras, de acordo com as ameaças encontradas. Aceitam injustiça, mentira, fraude, até homicídios com o fim de salvar o sistema. Não se trata somente dos conservadores que procuram defender o que têm. O mesmo sucede com os seus rivais da oposição que procuram estabelecer as suas próprias estruturas. Também eles se submetem  totalmente ao partido, ao sistema do partido ou do movimento.” (p. 64).
            E aqui importa também ter presente o risco que se instala até nas iniciativas de resistência. Os “de baixo”, confiando apenas na força da resistência pelas armas, também podem reeditar a conduta daqueles que combatem. Podem deixar-se contaminar por sua grade de valores. Convém não esquecer que há trabalhadores com cabeça de patrão, mesmo dizendo-se trabalhadores.. Com isso o A. quer também mostrar os difíceis caminhos da Liberdade. Não raro, é grande a tentação de não se entrar para o caminho da Liberdade, na medida em que ela encerra riscos, sacrifícios. Não poucos são tentados a desistir dos caminhos da libertação, quando avaliam o preço a pagar, os sacrifícios a assumir, o risco de perder sua segurança. Só pela força do Espírito, é que se vai vencendo o medo, é que se vai exercitando o necessário discernimento que conduz à Liberdade, já que “Não há estruturas que sejam portadoras do Espírito por si próprias” (p. 65). Pelo exercício do dom do discernimento, as pessoas vão se libertando, primeiro, de si próprias, de seus medos, de seu egoísmo, de suas omissões. Não é fácil abrir-se ao serviço dos outros, de forma desinteressada. É assim que, ao se entender que Liberdade rima com Caridade, vai se descobrindo que “O ato de liberdade culmina na opção por um serviço.” (p. 69). Serviço como expressão de Amor. Não um amor/um serviço abstrato “universal”, de mera declaração comovida, mas um amor praticado em relação a pessoas concretas, em especial às pessoas e grupos marginalizados, ao “povo de todos os oprimidos”.  Amor/serviço que se expressa em atitudes de solidariedade.
            Na busca de se radicalizar essa solidariedade, ela deve expressar-se no plano histórico concreto. Solidariedade que desborde do plano estritamente eclesial, afinal o Povo de Deus está espalhado pelo mundo inteiro, não apenas nas fronteiras das igrejas e dos países. Uma solidariedade que se comprometa com a tarefa de construir as condições concretas de libertação de todo o Povo de Deus, e não apenas de um segmento. “Portanto, precisamos preparar outro tipo de sociedade além do estritamente nacional.” (p. 74).

“O penhor do Espírito”

            Intitulado “O penhor do Espírito”, o capítulo V ajuda-nos a entender a presença vivicante do Espírito nos caminhos da História, e para além da mesma. Já início do capítulo, percebemos traços do esboço do primeiro livro resultante da proposta originária do A. (esboçada neste livro), em sua busca de compreender, de forma alternativa, a ação do Espírito no mundo. Referimo-nos ao livro O Tempo da Ação (1982). Já no livro ora resenhado, o A. manifesta sua intenção de compreender aspectos relevantes da Ação do Espírito, ao  longo da história humana: “O Espírito constrói assim o povo de Deus, preparando o caminho para o advento definitivo do reino de Deus.” (p. 76). Impactante, a esse respeito, é perceber como o A., a partir de sua inspiração na teologia paulina, como em 1 Cor 15, 17-23, vai recolhendo desse baú tantos ensinamentos efetivamente fecundos e com enormes implicações práticas. Recolhe, por exemplo, os efeitos vivicantes da ressurreição de Jesus, ao lembrar que “há um laço íntimo entre a ressurreição de Jesus e a ressurreição dos eleitos.” (p. 78). Essa presença da Palavra, agora conduzida pela força do Espírito, vai mexer profundamente na ação dos discípulos e discípulas de Jesus.* A vida eterna animada pelo Espírito implica reconhecer, manter e renovar os sinais de ressurreição já aqui e agora, uma vez que “A presença do Espírito faz com que o cristão seja de certo modo introduzido na vida eterna.” (p. 79). Isto tem uma efetiva conseqüência prática: na medida em que a eternidade já começa aqui e agora, até porque “O Reino de Deus está próximo”; “já chegou até vós o Reino de Deus” (Mt 3,2; 12, 28), os discípulos e discípulas de Jesus são vocacionados, pela força do Espírito, a protagonizar a construção de um mundo novo. Essa é a marca impressa pelo Espírito, de que fala a Carta aos Efésios (1, 13-14); é a força que faz com que “até no abismo da escravidão, alguma coisa da vida eterna e da cidade livre, a nova Jerusalém, possa ser vivida.” (...), havendo “uma transfiguração da personalidade desde o tempo presente.” (p. 82).
            Nessa direção, os discípulos e discípulas do Movimento de Jesus sentem-se chamados a refazer, já a partir de agora, as relações sociais e pessoais presentes. É aqui e agora que deve acontecer seu protagonismo, movido pela força do Espírito enviado por Jesus, o Enviado do Pai, vencendo a tentação de sucumbirem ao escapismo, sob a alegação falaciosa de que “só Deus dará jeito”, contribuindo assim para a passividade, que equivale a uma postura de cumplicidade com as estruturas ante as quais Paulo alerta a não nos conformarmos: “Não vos conformeis com as estruturas desse mundo” (Rm 12, 2).
            Grande desafio para os discípulos e discípulas de Jesus é exercitar o discernimento, ao buscarem equilíbrio entre o presente e o futuro. O A. alerta para dois vícios que tendem a nos afastar dos caminhos do Espírito. De um lado (cf. pp. 82-89). De um lado, há os que se deixam absorver de tal modo pelo porvir (projetos, lutas, militância...), sem qualquer tempo dedicado à vida do dia-a-dia, que terminam, por vezes, surpreendidos, ao verem que chegam ao final da vida, sem que tenham alcançado suas metas gerais e sem ter quase nada usufruído da vida presente. Por outro lado, há os que o A. compara a quem anda com uma flor na mão nos campos de batalha: tão absorvidos estão com a santidade pessoal, que se tornam incapazes de escutar os grandes gemidos das gentes. A Pedagogia do Espírito ensina o equilíbrio.

Dons e carismas do Espírito

            De que bens somos agraciados pelo Espírito? Eis a questão correspondente ao último capítulo do livro de Comblin. Com base em São Paulo, o A. trata de abordar sos dons espirituais, em sua ampla mutiplicidade. Os dons manifestam o penhor do Espírito. O primeiro sobre o qual reflete o A. é a oração. Diferentemente da oração de correspondentes a tantas culturas, a oração cristã distingue-se como um grito do ser humano face às fraquezas humanas, frente à opressão e às misérias do mundo. Um grito de um filho, em sua confiante entrega ao pai.
            Dons que acompanham a experiência do ser humano, ao longo da vida. Os dons espirituais que vêm pela via dos sacramentos, também assumem formas bem humanas, como as artes e a festa. O Espírito dota os seres humanos de instrumentos, de caminhos que lhes permitem acesso ao penhor do mesmo Espírito. É isso que implica, por exemplo, a Oração no Espírito. Diferentemente do sucede a outros povos, em que a oração brota do medo e da angústia ante a morte e as doenças, a oração cristã brota da espontaneidade, da alegria, da confiança e da entrega, representadas no grito que o filho dirige ao Pai, produzindo um estado comparado por São Paulo como o de embriaguez, como sucedeu em Pentecostes. Não se trata de engessar a oração, com fórmulas e códigos, dotando-a de rigidez, por meio de mecanismos fixos (hora, lugar...): “O grito “Pai” é um triunfo sobre o mal da opressão e da injustiça, uma vitória das massas esmagadas e derrotadas. É o grito de vitória apesar da sensação contrária. É o grito de confiança no meio dos gemidos da história.” (p. 91).
            Outra importante manifestação do Espírito, para a formação do Povo de Deus, se dá por meio de carismas de que o Espírito dota a todos, para o bem da comunidade, isto é, para a formação do Povo de Deus. Vale notar, a esse respeito, que a ênfase dada pelo A. recai sobre os carismas recebidos em função do bem comum, em proveito da formação do Povo de Deus, ou, nos termos paulinos, “para a edificação da comunidade”. Não por acaso que São Paulo “os assimila aos ministérios. Ele enxerga os dons espirituais do ponto de vista do seu papel na comunidade: são serviços. O dom não é considerado pela satisfação que dá ao sujeito; o que se estima no dom é o serviço que presta: os dons correspondem a diversoso papéis sociais, diversos papéis que concorrem para a construção da comunidade. (...) Para ele a profecia vale mais porque é útil na construção da comunidade”. (pp.. 94 e 95).
            Vasta é a ação do Espírito. O fato de atuar também no mundo não apaga sua presença nas pessoas, como vimos na entrega de dons a cada um, e como vemos em sua atuação nos espaços institucionais, como ocorre em relação aos sacramentos, em especial – lembra o A. – no Batismo e sobretudo na Eucaristia, em relação aos quais o maior apoio vem dos Santos Padres, com base na antiga tradição oral. Aqui se sublinha a força do Espírito como capaz de transformar a matéria, transfigurá-la (o pão, o vinho, a água, o óleo...). Dada uma sobrecarga de simbologia que se revela funcional ao comando hierárquico mais do que ao serviço das comunidades, como no caso, por exemplo, da multiplicação das bênçãos, o A. alerta: “A Igreja ampliou o sistema dos sacramentos por meio de inúmeras bênçãos. Houve bênçãos para quase tudo” (...) Cria-se também a falsa impressão de que se pode mudar o mundo simplesmente por uma bênção, por um gesto litúrgico, como se um pouco de água benta pudesse modificar o conteúdo real de uma realidade material e histórica. Favorece-se uma consciência mágica do mundo” (pp. 102-103),
            Também na festa, no casamento, nas artes se faz atuante a presença do Espírito. Sendo estas realidades concretas na caminhada do Povo de Deus, o Espírito aí se faz presente.É o que o A. apresenta, nas páginas finais do seu livro.

Alguns ensinamentos recolhidos da leitura

            Ao término extremamente provocativo e instigante dessa leitura, gostaria de repercutir brevemente algumas das impressões mais fortes e alguns ensinamentos que dela recolho. Uma primeira impressão: o cuidado espontâneo – tão espontâneo que é permanente - de Comblin, em fundamentar-se biblicamente, especialmente no tocante às fontes neotestamentárias. Sensação recorrente: a mesma que experimento sempre que o leio ou o escuto. Além de registrar isso com alegria, fiquei a me perguntar se não estaria aqui um dos elementos que dificultam uma eventual ofensiva por parte de Roma contra esse teólogo...
            Senti-me diante de uma proposta de reflexão pneumatológica tão impactante quanto frutuosa. Disso dão prova, por exemplo, os livros que ela desencadearia, nas três décadas seguintes à produção desse texto, a partir de seus respectivos temas/questões de referência: a “Ação” do Espírito no processo de formação do “Povo de Deus” pela força da “Palavra”, agindo com “Liberdade”, pela forma generosa como se atende à “Vocação”, no cotidiano da “Vida”.
            Antes, porém, desses desdobramentos criativos, há de se realçar mais fortemente o caráter inovador de que se acha impregnado este livro. Inovador por diferentes razões, a começar pelo fato de apresentar uma abordagem alternativa da missão do Espírito Santo. Inovação que ele elabora, também inspirado em alguns autores, a exemplo de Yves Congar, mas em cima de um contexto não menos novo, no campo pneumatológico: a América Latina sob o impulso e ressonância das conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979), não sem se tornar uma interpretação bem ao modo da Teologia da Libertação.
            Até então, a bibliografia atinente ao Espírito Santo restringia-se consideravelmente aos espaços intra-eclesiásticos (cantos, devoções, celebrações, sacramentos...). Daí decorria uma compreensão reducionista, de modo a tentar-se enjaular a ação do Espírito Santo nos espaços controlados pelas estruturas eclesiásticas, no caso, mais especificamente, a Igreja Católica Romana.
            Interpretação reducionista, também, pelo fato de tornar a missão do Espírito Santo algo etéreo, abstrato, “espiritual”, sem qualquer implicação com as realidades concretas dos seres humanos, aos sinais dos tempos. Limitação que o A. atribui à imprecisão da tradução para as línguas ocidentais do vocábulo original.
            À medida, porém, que se vai mostrando a fecundidade do Espírito em Sua ação no mundo, vão-se descortinando possibilidades de grande envergadura e de grande alcance sócio-eclesial. Graças à efetiva ação do Espírito no mundo, é que podemos sonhar acordados (Ernst Bloch) e comprometer-nos com a construção de um mundo alternativo, para o qual despontam, dentre outras, como tarefas ao nosso alcance:
- empenhar-nos na formação e fortalecimento de pequenos grupos e movimentos sociais, com projeto alternativo de sociedade. Tarefa que nos envolve diretamente no esforço de corresponder positivamente aos apelos do Espírito, em Seu projeto de formação do Povo de Deus, cujo processo de formação implica a multiplicação de pequenas comunidades livres e autônomas e, ao mesmo tempo, voltadas à construção da unidade de todo o Povo de Deus;
- investir o melhor de nós no processo de humanização do ser humano como um todo, e de todos os seres humanos. O Espírito nos chama a protagonizar a experiência de uma nova Humanidade, que faça justiça às legítimas aspirações de todo o Gênero Humano, na direção apontada pelo Sopro divino;
- ensaiar, já de agora, passos convincentes na direção da construção desse novo Povo de Deus, pelos caminhos da Liberdade e pela Pedagogia do Espírito.
            Do alto de seus abençoados oitenta e seis anos, e com uma vasta produção que alcança em torno de setenta livros e centenas de artigos publicados em diferentes periódicos nacionais e internacionais, José Comblin também se destaca pela força inovadora de sua produção. No caso específico, no campo da Pneumatologia, cuja maior contribuição consiste em propor uma nova leitura da ação do Espírito Santo, tratando de desprivatizar um entendimento da missão do Espírito, antes exclusivamente vinculado à esfera intra-eclesiástica, mostrando, com ampla fundamentação neotestamentária, a ação do Espírito no mundo, especialmente Sua missão de formar o Povo de Deus, ao longo da História.

João Pessoa, junho de 2009.








* Ver, também, a esse respeito o excelente ensaio de Pablo Richard. O Movimento de Jesus depois da ressurreição. São Paulo: Paulus, 2004.